"Sempre quis ficar ligado ao futebol"

2016-02-17

Nuno Gomes

O antigo goleador português, agora director-geral da Academia do Seixal, elogia as condições de trabalho que o Benfica oferece aos jovens, a interacção que existe entre todos os treinadores e Rui Vitória, e vê em José Gomes o seu sucessor.

Em entrevista à “Jogadores”, publicação oficial do SJPF, Nuno Gomes fala do seu dia-a-dia, da carreira pós-jogador de futebol, dos conselhos que transmite aos mais jovens e da importância de ter uma formação superior para precaver o pós-carreira.

Recentemente passou a ser o responsável máxi­mo pela formação do Benfica. Como é agora o seu dia-a-dia no clube?
O meu dia começa cedo, venho para o Seixal e trabalho aqui de manhã à noite. Organizo a minha actividade, vejo alguns treinos e, sendo o responsável pela formação do Benfica, há muito trabalho para fazer. Requer muita disponibilidade, concentração e respon­sabilidade. Algumas vezes tenho de viajar, mas a maior parte do tempo dedico-o às tarefas que desempenho na Academia. Almo­ço aqui, acompanho os jovens e ao final do dia ainda vou para a universidade.

Era algo que estava nos seus planos?
Acabei de jogar, tive oportunidade de ficar ligado ao Benfica nou­tras funções [área internacional], é certo, e por acaso nunca tinha pensado nesta possibilidade, que surgiu devido ao facto de a pessoa que ocupava este cargo ter partido para outras aventu­ras. Foi-me feito este convite, o qual ponderei e acabei por aceitar porque acho que é um projecto muito aliciante, é uma coisa que gosto de fazer. Apesar de estar muito tempo no gabinete estou perto dos treinos e dos jogos, vou matando esse bichinho que é o futebol, e estou empenhado para que este projecto continue o seu rumo e que consiga chegar sempre aos objectivos que são, cada vez mais, conseguir alimentar a equipa principal do Benfica com jovens formados aqui.

O antigo director-geral do Centro de Estágios, Armando Carneiro, afirmou que será um fantás­tico sucessor. Aumenta a sua responsabilidade?
Sem dúvida. O Armando fez um excelente trabalho e este pro­jecto teve início há muitos anos também com a visão que o nosso presidente teve sobre aquilo que queria para o clube. O Armando foi uma grande aposta, vencedora, que nos últimos cinco anos deu os frutos que toda a gente conhece e, portanto, ouvir essas palavras só me deixa satisfeito e claro que aumentam a minha responsabilidade porque não quero defraudar as expectativas de toda a gente. A máquina está montada, as pessoas que traba­lham aqui são as mesmas, são muito competentes, só mudou a pessoa que vai ao volante.

O Centro do Seixal é constantemente elogiado pelas condições que oferece aos jogadores. Sen­te que ainda há áreas por melhorar?
Como clube grande que somos e, quanto a mim, inovadores em muitas coisas, estamos sempre à procura de melhor e há sempre parafusos para apertar, coisas a melhorar, novos projectos por fa­zer. Estamos sempre à procura de poder proporcionar aos nossos atletas melhores condições para que eles possam preocupar-se somente em jogar e ter as melhores ferramentas e tecnologias ao serviço do futebol deles. Eles são os artistas e são eles que vão depois dentro do campo provar se nós estamos errados ou não.

Os jovens, por saberem quem foi no clube, procu­ram-no e pedem-lhe conselhos?
Sim, começam agora a soltar-se mais. No início foi um pouco aquela reacção de “o Nuno Gomes que nós conhecíamos agora vai ser o responsável por nós”, olhavam para mim assim com al­gum receio, mas à medida que me vão conhecendo vão ficando mais soltos. Os mais novos são sempre mais tímidos, há alguns que provavelmente já não me viram a jogar, mas os mais velhos reconhecem-me e tem havido uma maior interacção entre nós.

É uma referência do clube e do futebol portu­guês. Ter atingido esse estatuto pesou na hora de enveredar pelo dirigismo?
Acho que sim. Sempre quis ficar ligado ao futebol porque foram muitos anos a jogar e é a minha vida, a minha paixão desde pe­queno e não me via a fazer outra coisa fora deste ramo. Como é óbvio, ficar ligado ao Benfica seria ainda muito melhor porque é o clube do qual eu gosto, o clube que me tornou conhecido inter­nacionalmente. É um clube no qual estive 12 anos e continuar a trabalhar no Benfica para mim foi fantástico. Não sei se foi por causa desses anos todos que tive esta oportunidade, mas estou grato e sou um felizardo porque há muitos jogadores que acabam a carreira e querem continuar ligados ao clube e não conseguem.

Surgiu no Boavista, que na altura era um exem­plo na formação. Isso ajudou-o de alguma forma para exercer as actuais funções?
Ajudou mas também, por um lado, complica porque a evolução que houve a este nível não tem nada a ver com o tempo em que passei pela formação do Boavista. É tudo muito diferente, a pró­pria maneira de designar os escalões é diferente. Nos infantis, por exemplo, agora há futebol de 9, na minha altura não havia. Nem o próprio futebol de 7, era logo de 11. Agora há benjamins, tra­quinas, petizes e na minha altura também não havia. Jogávamos com seis ou sete anos mas era na rua, hoje com essa idade já há equipas a competir. A um nível superior não deixa de ser a mesma coisa: iniciados, juvenis e juniores, é um pouco o trajecto que fiz no Boavista, os quadros competitivos é que estão um pouco altera­dos. Também há mais competições nas selecções, o que me faz alguma confusão, sinceramente. Apesar de saber que para um jovem é sempre fantástico jogar na Selecção, haver competição na Selecção ao mesmo tempo que há jogos do campeonato na­cional mexe um bocadinho comigo: o calendário fica demasiado apertado e muitas vezes os jogadores não participam nos jogos do campeonato, mesmo nas fases finais, porque estão ao serviço da Selecção. É o que temos neste momento e sei que também é importante para a carreira de um jogador ser internacional. Nesse sentido é um pouco diferente do que era quando passei por esta fase, mas por outro lado ajuda-me porque vivi por dentro o trajec­to que estes jovens estão a percorrer e percebo as inseguranças, os medos, as expectativas que têm e consigo estar na pele deles.

E ter jogado em Itália e Inglaterra trouxe-lhe mais-valias enquanto dirigente?
Sim, claro que é sempre uma mais-valia podermos viver a cultura de outro país, a maneira como olham para o futebol. Em Itália é igual ao nosso país, em Inglaterra já se notam diferenças acima de tudo pelo poder económico e pela moldura humana que há em todos os jogos. Mas sim, ter jogado nesses países enriqueceu-me sobretudo como pessoa e deu também para perceber outros con­textos. Dentro das quatro linhas o futebol é todo igual, se calhar tem esse dom de globalmente ser uma coisa única. Aliás, não é só o futebol, qualquer desporto é igual, seja na China ou em Portugal, e mesmo não falando a mesma língua conseguimo-nos entender a jogar. Mas sem dúvida que essas experiências foram enriquece­doras para mim.

Considera que as referências dos clubes deve­riam ver no dirigismo o passo seguinte?
Acho que cada vez mais se está a apostar nessa vertente e vemos ex-jogadores ocuparem cargos no dirigismo. Hoje vemos isso na Federação e noutros clubes. Há sempre a saída como treinador, mas nem todos têm o dom de treinar. Acho que é preciso ter esse talento, não basta ter tido uma carreira brilhante para se tornar um excelente treinador. A via do dirigismo é outra saída para os ex-jogadores, há também os comentadores de futebol em pro­gramas televisivos, mas cada vez mais os jogadores estão a pen­sar no futuro e isso é o mais importante, precaver o pós-carreira.

O SJPF tem alertado os jogadores para se for­marem ao nível da Gestão do Desporto, para te­rem outras saídas quando terminarem a carrei­ra. Aconselha antigos colegas a formarem-se?
Sem dúvida. Ser futebolista é muito bonito mas nem todos conseguem acabar a carreira e “sobreviver” sem terem de ir trabalhar para manter financeiramente a família. Acho que hoje os jogadores olham para isso mais cedo do que antiga­mente, nota-se uma maior preocupação nesse sentido, embo­ra seja preciso haver esse alerta constante para a formação. Não é preciso esperar que se acabe a carreira, muitas vezes pode conciliar-se com o futebol, há sempre tempo para irmos a uma ou outra aula e irmos antecipando esse cenário. Hoje há uma série de opções e só mesmo quem não quer é que não faz.

Em 2014 inscreveu-se na Universidade Autóno­ma para tirar a licenciatura em Administração e Gestão Desportiva. Ter formação superior era um objectivo antigo?
Era um objectivo desde cedo. Quando comecei a estudar o objec­tivo era um dia chegar à faculdade, embora depois a meio do tra­jecto tenha abandonado a escola porque só pensava em futebol. Depois com as idas às selecções comecei a faltar muito à escola e optei por abandonar, erro meu na altura, mas esse bichinho de acabar o 12.º ano e um dia ir para a faculdade esteve sempre presente. Sabia que ia ser difícil, mas chegou o dia e cá ando a tentar acabar o curso de Gestão, que comecei há um ano e meio.

Foi o rosto numa iniciativa da Fundação Benfica em que deram calçado a jovens cabo-verdianos. Sente que os jogadores consagrados têm um pa­pel social fundamental?
Sim, acho que os jogadores devem dar a cara por essas iniciativas e acima de tudo devem dar o exemplo porque vão arrastar pes­soas para a causa. Por poucas pessoas que arrastem é sempre benéfico. Quando é uma pessoa conhecida, um jogador, neste caso, acho que atrai mais pessoas, dá maior visibilidade à causa e, como é óbvio, os jogadores devem preocupar-se também com esses factores, em ajudar os outros, porque muitas pessoas passam por dificuldades.

A educação é um dos temas prioritários do Sindi­cato para este ano. Manter os jovens focados nos estudos é uma preocupação do clube?
Sem dúvida. Temos essa preocupação cada vez maior. Temos um departamento de acompanhamento da área escolar e social, portanto os nossos atletas residentes, e não só, mas acima de tudo os que residem aqui no Seixal, têm um acompanhamento diário de sessões de estudo. Temos protocolos com duas escolas aqui perto e há a preocupação de quem tirar negativas levar um puxão de orelhas e muitas vezes perder alguns jogos para que se dediquem mais aos estudos. E diariamente há um tempo des­tinado à realização dos trabalhos de casa e a explicações para que eles estejam dedicados aos estudos. No final dos períodos escolares também há o reconhecimento de premiar os melhores alunos residentes. Temos a preocupação de que não lhes falte nada e que possam ser acompanhados perante as dificuldades que vão apresentando.

Em 2014, o Benfica atingiu a final da Youth League. Vencer na formação é importante ou nesta fase os resultados passam para segundo plano?
Ganhar é sempre importante, quanto a mim, mas o mais impor­tante é formar jogadores para alimentar o futebol profissional do Benfica, a equipa B e a principal. Como é óbvio, se o pudermos fazer ganhando nos escalões mais jovens, é juntar o útil ao agra­dável. Essa é sempre a nossa vontade e o objectivo do Benfica é ganhar em todos os escalões, mas não viver obcecado com isso. Acima de tudo queremos preparar os jogadores para chegarem à equipa principal.

Nélson Semedo, Renato Sanches e Gonçalo Gue­des têm sido apostas regulares de Rui Vitória. Sente que há outros valores da formação na ca­lha para a equipa principal?
Temos um naipe de jogadores que, quanto a mim, também estão na calha para, mais tarde ou mais cedo, terem uma oportunidade na equipa principal. 

Era ponta-de-lança, uma posição tradicionamen­te difícil para a formação nacional. Vê algum avançado na Academia com potencial para se­guir as suas pisadas?
Posso estar a ser injusto para os outros avançados, temos bons avançados em todos os escalões, mas posso dizer que um dos jogadores que nós achamos que vai ter condições para jogar na equipa principal e na Selecção é o José Gomes, que neste momento está nos juniores. É um avançado que tem feito a di­ferença nessa posição desde que chegou ao clube. Não quero estar a ser injusto com os outros, mas é um dos melhores pon­tas-de-lança que temos no Benfica neste momento.

O facto de Rui Vitória ter trabalhado muitos anos na formação facilita o trabalho dos téc­nicos dos escalões jovens?
Há uma interacção, há reuniões que proporcionamos entre os nossos treinadores dos escalões jovens com o Rui Vitória. É uma pessoa que já esteve nesta casa, foi treinador dos juniores, e está por dentro do processo daquilo que é a formação de um jovem jogador. Ele próprio foi atleta e essas reuniões entre os treinadores de todos os escalões com o treinador principal têm sido muito úteis porque vão-se falando em nomes, o Rui Vitória conhece todos os jogadores e isso é muito benéfico para o nos­so trabalho de alimentar a equipa principal. Há todo um método e um objectivo comum que é definido entre todos.

O aparecimento das equipas B foi determinante para surgirem novos talentos?
Acho que sim. As equipas B só vieram fazer bem aos clubes que as têm porque é um espaço de afirmação dos jovens joga­dores que neste momento estão a competir num campeonato que é muito equilibrado, apresenta um nível de futebol já ele­vado e para nós é extremamente benéfico. Temos pelo me­nos oito/nove juniores no plantel da equipa B, que raramente jogam pelos juniores, têm idade de júnior e estão a competir com jogadores que podem ir até aos 30 e muitos. Isso dá-lhes uma bagagem para que no dia em que dêem o salto para uma equipa da I ou da II divisão apresentem uma rodagem de quilómetros bem diferente se fosse uma passagem de júnior para sénior.

Foi colega de Rui Jorge. Considera que tem feito um trabalho importante nas selecções jovens?
Sem dúvida. O Rui tem a particularidade de ter feito também esse trajecto como jogador e tem essa sensibilidade. É uma pessoa que me parece estar no cargo indicado, embora ache que ele daria conta do recado noutras funções, mas sem dúvida que é uma mais-valia para a nossa Selecção, que tem apresen­tado excelentes resultados. Tem havido um feedback dos pró­prios jogadores de que o Rui trabalha muito bem e fico contente por ele porque é uma excelente pessoa.

Não se vê sentado no banco, como treinador?
Nunca me vi como treinador, é engraçado. Nunca digas nunca, mas nunca me vi como treinador, não sei bem porquê. Houve pessoas que me tentaram encorajar para isso, mas resisti [risos].

Qual é a sua opinião sobre a actuação do SJPF no futebol português?
É importantíssimo e espero que os jogadores cada vez mais te­nham noção de que é importante apoiarem o Sindicato, serem membros, para que o Sindicato se torne mais forte. O Joaquim tem feito um excelente trabalho, toda a sua equipa. Desde que me lembro que sou membro do Sindicato e muitas das pessoas do meu tempo continuam a trabalhar lá, é sinal de que fazem um excelente trabalho e têm resolvido muitos dos problemas que têm aparecido nos últimos tempos em algumas equipas. Sei que muitas vezes o trabalho é muito e, se calhar, prejudicam as vidas pessoais, mas estão ao serviço do desporto. Quero, por isso, dar-lhes os parabéns pelo trabalho realizado e que con­tinuem a ter essa força que demonstram para defender com unhas e dentes os jogadores de futebol.